quarta-feira, 17 de junho de 2020

Endogamia académica e viciação concursal



Reproduzo novamente abaixo um post (que estava alojado noutra plataforma), que tinha sido originado por conta de uma petição iniciada no final de 2015, da qual fui o primeiro subscritor, contra as elevadíssimas percentagens de endogamia académica, próprias de um país do terceiro-mundo, e o qual desde essa data foi sendo objecto de várias actualizações, mas que hoje constatei que tinha desaparecido, alegadamente ao que me contaram, por conta de um problema informático, sendo pertinente referir que antes desse estranho desaparecimento o mesmo contava já com mais de 16.000 visualizações:


Aqueles largas centenas de Colegas que subscreveram esta petição, no link acima, fizeram-no porque reconhecem que existem problemas graves na Academia, relacionados com o recrutamento, seleção e promoção de Professores, vide os vários textos mencionados abaixo e bem assim as centenas de comentários deixados no site da petição. Questão diferente e bem mais controversa, reside em se saber porque motivo as instituições que lá fora lideram ou simplesmente seguem as melhores práticas internacionais, a que alude o preâmbulo do ECDU, conseguem tal sem a isso estarem obrigadas por nenhuma Lei, enquanto outras por cá denotam uma estranha atracção por divergir dessas mesmas práticas, necessitando por conseguinte de Leis que obstem a essa pulsão desviante.

Em 5-04-2019 o professor catedrático Diogo Ramada Curto da Universidade Nova de Lisboa afirmou ao Jornal de Negócios que: “os mecanismos clientelares nas universidades são muito fortes”

Em 6-03-2019 o escritor João Pedro George escreveu na revista Sábado artigo sobre os cursos de Direito referindo que “a FDUL é uma espécie de grande família...composta de várias pequenas famílias (ou grupos tribais) onde os cargos docentes são tratados como mercadorias..."

Em 2-03-2019 David Marçal e Maria Manuel Mota dão entrevista sobre a academia Portuguesa e enquanto o primeiro fala daqueles que sobem pela vassalagem já a Maria Manuel Mota, diz que a endogamia académica: “dá mau nome ao parasitismo”

Em 1-03-2019 Gonçalo Quadros, Fundador e CEO da Critical Software, vencedor do Prémio Universidade de Coimbra disse ao jornal Público disse que: "Há uma certa cultura de consanguinidade na universidade portuguesa, de endogamia, que limita fortemente o mérito"

O jornal Público de 16-02-2019 contém artigo que aborda a endogamia académica e relata que as suas consequências são que: “As pessoas em vez de ciência estão a fazer política de corredores e a universidade torna-se uma maneira de arranjar salários para os amigos...” https://www.publico.pt/2019/02/16/ciencia/prepublicacao/endogamia-academica-vale-bebado-conhecido-alcoolico-anonimo-1862161

Em Outubro de 2018 a A3ES publicou um estudo sobre a Caracterização do corpo docente do ensino superior português, onde a palavra endogamia aparece referida bastantes vezes, nada menos do que 194.

Em 17 de Junho de 2018 o catedrático jubilado José Ferreira Gomes escreve no Público que:
"Beneficiam aqueles que acumulam mais trabalho (e alguns favores aos mais velhos)... Os lugares são muitas vezes abertos apenas quando alguém da casa bateu à porta do reitor e poucos candidatos externos se prestam ao provável vexame de uma avaliação caseira,..." https://www.publico.pt/2018/06/17/sociedade/opiniao/sim-a-uma-nova-carreira-universitaria-1834000#gs.VmQ3Pfmq

Em 23-09-2017 o Expresso publicou declarações do Ministro da Ciência Tecnologia e Ensino Superior pelas quais o mesmo comenta o estudo da DGEEC e em que aquele diz ser inadmissível que haja cursos com percentagens de endogamia de 100% e também que é preciso combater as corporações nas universidades
porém logo aproveita pa ra lavar as mão dizendo que não é polícia das universidades ! Palavras de um Ministro cuja coragem só lhe chegou para combater as praxes e que sem dúvida alguma não ficará para a história pelo denodo com que combateu as tais corporações universitárias, cegamente confiando/esperando quiçá que elas se combatessem a elas próprias !

Em 21 de Setembro de 2017 foi tornado público um estudo da DGEEC sobre o fenómeno da endogamia académica nas universidades Portuguesas. Estudo esse que foi objecto de artigo no jornal Público https://www.publico.pt/2017/09/21/sociedade/noticia/no-ensino-superior-nao-e-o-merito-que-comanda-as-contratacoes-17861461786146 No mesmo merecem destaque as compugentes declarações do Catedrático José Ferreira Gomes, Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX Governo e do Ensino Superior e da Ciência no XX Governo, que diz (pasme-se) que a endogamia existe porque na sua génese está um problema humano ! No entendimento daquele Colega a violação dos princípios constitucionais do mérito e da igualdade têm afinal uma explicação humanística. Os júris não são assim culpados de violação do dever de imparcialidade mas apenas "culpados" de terem um coração muito generoso...para com os candidatos da casa Também muito se estranha que o Público tenha logo ido pedir conselho precisamente a quem enquanto Secretário de Estado durante 2 Governos fez rigorosamente nada para tentar resolver o problema da endogamia. Não menos estranha é a afirmação do antigo Secretário de Estado quando diz que o diploma do emprego científico constitui "uma oportunidade dourada" para reverter o fenómeno, esquecendo-se porém que em artigo publicado no inicio deste ano tinha escrito que o referido diploma até iria agravar o problema da endogamia !

Também em Março foi conhecido recente documento interno do Dep. de Física do IST disponível em https://www.docdroid.net/Qv14n3X/seleo-de-candidatos-fsica-ist.pdf.html
o qual contém recomendações sobre as linhas de selecção de candidatos pode ler-se que: "a justificação das propostas de abertura de concursos e/ou dos critérios/pesos adotados na elaboração dos editais deve ser acompanhada dos curricula vitae de potenciais candidatos"

Em Março o Presidente do SNESUP escreveu que [/b]"No Ensino Superior e Ciência, acusações de endogamia e concursos viciados caminham em paralelo com fenómenos de desvalorização e precarização"

Na edição do semanário Sol publicada em 25 de Fevereiro o Professor Catedrático José Ferreira Gomes refere que as propostas que se preparam para a ciência vão incentivar a mediocridade e agravar ainda mais o problema da endogamia académica. https://www.docdroid.net/xYXU9s1/artigo-25-fev-2017-ex-secretrio-de-estado.pdf.html

Em 9 de Fevereiro o Professor Catedrático Arnaldo Videira escreveu a propósito da avaliação de desempenho universitária sobre um regime "que frequentemente privilegia os “amigos” e lambe-botas em detrimento do mérito

Em 13 de Janeiro de 2017 o historiador Rui Tavares, escreveu que "contrata-se quem já é da casa ou já fez favores à casta, em concursos de regras abstrusas que servem mais para eliminar candidatos inoportunos do que para ampliar o leque de escolha " 

O Professor Catedrático José Ferreira Gomes que foi Secretário de Estado do Ensino Superior no XIX Governo e do Ensino Superior e da Ciência no XX Governo, escreveu em 30 de Dezembro de 2016 que "Não é surpreendente que as decisões de recrutamento de docentes a todos os níveis nem sempre favoreçam os mais promissores. É compreensível que as decisões de abertura de concursos, de constituição de júris e de seriação pelos júris pareçam perseguir outros objetivos...Todos estão de acordo em criticar o inbreeding, mesmo aqueles que participam nos processos que o reforçam" 
Foi por certo a primeira vez que um Colega que exerceu funções governativas ainda por cima logo em dois Governos da República reconhece, ainda que o tenha feito em termos abstratos, a existência de concursos manipulados na academia.

O Presidente do Conselho Nacional da Educação escreveu no relatório do Estado da Educação apresentado em 26 de Setembro de 2016, que a endogamia académica coloca em causa a equidade e o mérito na carreira universitária e é responsável pela paroquialização das equipas de investigação cientifíca cuja maioria não vai além da mediania: https://www.publico.pt/2016/09/24/sociedade/noticia/professores-convidados-mantem-tendencia-do-ensino-superior-para-a-endogamia-1745056?frm=ult

 No mesmo relatório consta ainda o seguinte texto: Em países onde a endogamia representa um problema,a possibilidade de contratar os melhores candidatos é reduzida, apesar da “fachada” dos concursos abertos, aparentemente transparentes e competitivos...Os processos de seleção, embora formalmente baseados na avaliação padronizada das candidaturas, são na prática baseados na avaliação informal das competências individuais e dos relacionamentos pessoais durante a formação, o que resulta no ‘favoritismo do candidato local’... Este tipo de contratação não só abre a porta à corrupção, como é injusto para aqueles que não criaram relações pessoais dentro do departamento ou que mudaram de instituição de ensino superior. Desde modo, a independência intelectual e a mobilidade são castigadas.

Em 6 de Agosto de 2016 o semanário Sol publicou uma longa entrevista ao Professor Catedrático Jubilado Jorge Calado do IST, onde aquele afirmava que muitos Professores Universitários são selecionados tendo como critério não irem fazer sombra aos que já lá estão. Trata-se de um básico mecanismo de sobrevivência de Professores medíocres que apenas um sistema de recrutamento caduco permite e o qual já foi analisado aqui https://link.springer.com/article/10.1007/s11024-013-9231-0

Durante o ano de 2016 nove colegas divulgaram uma carta aberta sobre um concurso para selecionar um Professor de Matemática que recebeu 38 candidaturas (algumas até de colegas com prémios Gulbenkian, alguns com currículos longos tanto cientifica como pedagogicamente) e onde o candidato selecionado foi precisamente aquele que não tinha nenhum artigo científico nem atividade científica conhecida na área do concurso.

O Professor Catedrático Luís Campos e Cunha da Universidade Nova de Lisboa escreveu no site da petição, em 2016, que endogamia académica é um problema muito grave que incita e fomenta o lambe-botismo das hierarquias instaladas. Também o Professor Catedrático Armando Machado da Universidade do Minho escreveu "A progressão na carreira universitária portuguesa depende ainda em larga medida de padrões de obediência e subserviência a mentores e exorientadores que, por sua vez, com muita frequência manipulam os júris de avaliação"  

Destaque para o texto abaixo extraído de uma comunicação dos investigadores Orlanda Tavares, Vasco Lança e Alberto Amaral apresentada em Setembro de 2015 numa conferência realizada na Áustria, comunicação essa onde se refere que Portugal é um dos campeões europeus da endogamia académica: “inbreeding is likely to damage candidates’ equal opportunities and the university’s quality of teaching and research...academic inbreeding restricts the possibility of hiring the best potential candidates for academic appointments... Although in many countries recruitment procedures occur through open calls for positions, which appear to be fair and transparent... in inbred countries "these ‘open and competitive’ procedures are essentially pretense, as no one believes in the possibility of genuinely fair chances for outsiders”

Em 1 de Novembro de 2014 recebi de um conhecido ex-Reitor de uma universidade pública um email onde se podia ler o seguinte: "Conhecem-se concursos que são ganhos por candidatos exteriores, devido ao mérito dos seus curricula, mas que são acolhidos nessas instituições como se se tratassem de intrusos ou mesmo de inimigos. A introdução no ECDU de alguns critérios que impedissem a endogamia seria de enorme interesse"

O Professor Catedrático Jubilado Mário Vieira de Carvalho da Universidade Nova de Lisboa escreveu em 2009 "tem-se dado como provado em tribunal que há membros do júri que, com o intuito de favorecer um candidato em detrimento de outro, fazem tábua rasa das grelhas de avaliação que o próprio júri aprovara

O Professor Emérito do MIT Michael Athans escreveu em 2001 sobre a sua estada no IST e em particular sobre o problema da endogamia merecendo destaque a trágica previsão "inbreeding may also lead to a serious mediocrity in the Portuguese educational system for the next 30-40 years...some “academic dictators” encourage hiring their mediocre students and employ inbreeding as a means of hiding their academic incompetence and inferior research capabilities"

O Professor Catedrático Vital Moreira da Universidade de Coimbra escreveu em Julho de 2000, sobre o problema da endogamia em geral e os consequentes concursos com fotografia em particular "na maior parte dos casos os lugares só são postos a concurso quando alguém "da casa" esteja em condições de concorrer. Depois, normalmente ninguém de fora da instituição ousa apresentar-se a concurso. Finalmente, o concorrente único é sempre admitido... com a ajuda de júris amistosamente escolhidos.":

O Professor Catedrático Orlando Lourenço, da Universidade de Lisboa, deve ter sido o primeiro, quando em Junho de 2000 escreveu que a endogamia era o primeiro inimigo da universidade Portuguesa. Mas disse muito mais, disse também que na Academia Portuguesa, "é a obediência, quando não a mediocridade, que são recompensadas"

Aqui ao lado na vizinha Espanha a academia padece de idêntica enfermidade, ainda assim com uma percentagem de endogamia média inferior à das universidades Portuguesas, contudo os Colegas Espanhóis há muito que estão conscientes da gravidade deste problema e das consequências perversas da endogamia para a docência e para a investigação. Como refere o Catedrático Jordi Caballé, da Universidade Autónoma de Barcelona: "Los centros más endogámicos, los que se muestran menos abiertos a la incorporación de talentos externos, son también los más fosilizados".

Um recente artigo do Catedrático José Ginés-Mora, da Universidade de Valência é também bastante incisivo na condenação da endogamia universitária "la endogamia es consecuencia de corruptelas: se favorece al familiar, al amiguete o simplemente al “cliente” del que se espera fidelidad en el futuro" 

Igual destaque merece um outro artigo muito esclarecedor do Catedrático Andrés Betancor "Es corrupción cuando se trata de un contrato de 10.000 euros para organizar un evento...pero cuando se trata de la adjudicación de una plaza de catedrático es … endogamia" 

E também um outro recente do Catedrático Carlos Gorriarán que escreveu que "Todos estos escándalos tienen una raíz común: la endogamia y sus redes clientelares, que hacen muy difícil acceder a la universidad como profesor e investigador si no es bajo el patrocinio clientelar del grupo dominante en el departamento, que después tratará de condicionar y dirigir la carrera académica del novato. Bajo la regla del favor debido y concedido, y del silencio de los beneficiados y aspirantes a serlo, se toleran y perpetran demasiados atropellos."

Ou ainda mais recentemente em Fevereiro de 2017 a acusação da Catedrática Rosa Berganza candidata a Reitora da Universidade Rei Juan Carlos de Madrid instituição que acusou de funcionar como uma rede clientelar "ao mais puro estilo mafioso" http://politica.elpais.com/politica/2017/02/09/actualidad/1486639585_879039.html

No entanto os Colegas Espanhóis são muito mais proactivos a denunciar irregularidades concursais e outras através de uma plataforma criada pela Associação para a Transparência: http://www.corruptio.com/web/main/main.htm  iniciativa que está longe, pelo menos num futuro próximo, de vir a ser replicada em Portugal, talvez porque, como escreveu no Público o Colega André Freire do ISCTE em 8 de Janeiro de 2016, existem na universidade Portuguesa várias condicionantes que "estimulam a domesticação dos docentes".

Ricardo Cabral, Francisco Louçã e Bagão Félix escreveram sobre a importância de se contribuir para combater a danosa tendência para a indiferença, que transforma a omissão num caminho, o adiamento num meio, a apatia numa consequência, a insensibilidade numa regrae o antropólogo António João Maia escreveu recentemente que “os atos de corrupção e fraude que as mais das vezes ocorrem no contexto da ação de organizações (públicas ou privadas) são praticados por indivíduos (funcionários ou trabalhadores) dessas organizações que revelam deficiências na interiorização dos valores éticos e morais...” é por isso lícito perguntar:
1 - será que um Professor que participa activamente na viciação de um procedimento concursal, ou que seja o beneficiário directo desse crime, reúne suficientes condições de isenção e imparcialidade, para avaliar os seus alunos de forma rigorosa sem que se corra o risco de favorecer alguns deles ?
2 - será que não existe risco desse Professor poder “contaminar” os seus alunos contribuindo para o aumento da probabilidade destes poderem vir a padecer de deficiências da mesma natureza?
3 - e será que quando se acaba de saber que um projecto de investigação financiado pela FCT, desenvolvido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que envolveu 180 cursos, 7.292 alunos e cerca de 2.700 docentes com o título “A ética dos alunos e a tolerância de professores e instituições perante a fraude académica no Ensino Superior” confirma a existência de uma elevada incidência de fraude académica em Portugal, num país onde muitos daqueles que deviam constituir-se como modelos de comportamento se pautam afinal por uma relatividade ética e moral, permanente e generalizada, de que os famigerados e miseráveis “Papéis do Panamá” constituem apenas “a ponta do icebergue”, não deveria a contratação de Professores Universitários merecer neste contexto redobradas preocupações, por forma a ser feita de forma transparente, rigorosa e no respeito pelos princípios da justiça, da imparcialidade e do mérito, consagrados na Constituição da Republica Portuguesa ?